Projeto Nutrir, da UFRN, alia saúde, segurança alimentar e cidadania

Horta comunitária cria ambiente de aprendizagem para desenvolvimento de sistemas alimentares sustentáveis

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Embora a relação entre alimentação e saúde seja amplamente compreendida, conforme relatório do IPES-Food-Painel Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis (2017, Unravelling the Food–Health Nexus: Addressing practices, political economy, and power relations to build healthier food systems), mudanças profundas nos sistemas alimentares globais resultaram em impactos negativos significativos na saúde e bem-estar, ao longo das últimos décadas. Esses impactos, segundo os estudos, são experimentados de forma desigual em todo o mundo, e variam da situação de insegurança alimentar a doenças crônicas e da degradação ambiental à diminuição da oportunidade econômica e à erosão das culturas.

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No Brasil, o ataque ao problema da fome que está na base desta relação, foi incorporado na agenda estratégica de governo a partir de 2003, quando a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) passou a ser institucionalizada como uma política de Estado, com a criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN). Esta institucionalidade foi orientada pelos princípios de participação social e da intersetorialidade. Em 2010, a alimentação foi incluída como direito social na Constituição Federal, com um conjunto de políticas públicas que possibilitou que, em 2014, o Brasil saísse do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). O País foi citado como um caso de sucesso por ter reduzido de forma expressiva a fome, a desnutrição e subalimentação nos últimos anos, com destaque para a governança de SAN adotada. (Organização Pan-Americana da Saúde. Sistemas alimentares e nutrição: a experiência brasileira para enfrentar todas as formas de má nutrição. Brasília, DF: OPAS; 2017, pag 23)

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Apesar das conquistas alcançadas, desafios importantes persistem para garantia do acesso a alimentos, o que inclui a boa qualidade deles. Para citar um desses desafios, o Brasil vive, no momento, a possibilidade de um grande retrocesso, com as tentativas de mudança na legislação que regula o uso de agrotóxico, produtos tóxicos que, largamente utilizados em frutas, verduras, carnes, leite, bebidas, produtos industrializados e em quase tudo que se encontra nas prateleiras dos supermercados, a pretexto de proteção contra pragas, são nocivos à saúde, o que leva à necessidade de controle para seu uso. Pesquisas desenvolvidas pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, e pelo Ministério da Saúde – Fundação Oswaldo Cruz, apontam que os agrotóxicos podem causar diversas doenças, como problemas neurológicos, motores e mentais, distúrbios de comportamento, problemas na produção de hormônios sexuais, infertilidade, puberdade precoce, má formação fetal, aborto, doença de Parkinson, endometriose, atrofia dos testículos e câncer de diversos tipos. Dossiê publicado em 2015 por diversos órgãos de pesquisa, entre os quais Fiocruz e Abrasco, registra que os agrotóxicos já contaminam o solo, a água e até mesmo o leite materno.

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Apesar dos danos registrados à saúde, consumimos, no Brasil, o equivalente a 7,3 litros de agrotóxicos por pessoa, a cada ano, muitos dos quais são proibidos na Europa e nos Estados Unidos por estarem relacionados ao câncer e a doenças genéticas. Com todo esse quadro que atenta contra a saúde, um novo projeto de lei está sendo proposto para atender aos interesses do agronegócio, ampliando ainda mais o leque de agrotóxicos no mercado, ao afrouxar as normas que regulam o uso dessas substâncias no País. Proposto em 2002, o PL 6299/02 vem sendo objeto de árdua campanha visando sua implementação, pela bancada ruralista, tendo sido proposto pelo ex-senador e atual ministro da Agricultura Blairo Maggi, um dos maiores produtores rurais do Mato Grosso.

A conjuntura na contramão dos cuidados à saúde e dos interesses da sociedade, em favor de oligopólios econômicos e financeiros, põe em destaque a importância de projetos como o que vem sendo desenvolvido no Dept de Nutrição da UFRN, apostando em caminhos fecundos e concretos na área de saúde, segurança alimentar e cidadania.

O PROJETO DA HORTA COMUNITÁRIA NUTRIR – HCN

O Nutrir é um projeto de horta urbana comunitária, concebido com fins educativos, em uma abordagem sustentável do sistema alimentar, visando a promoção da saúde humana e ambiental, e privilegiando as Plantas Alimentícias Não Convencionais – as chamadas PANCs – da biodiversidade brasileira. Segundo a nutricionista e cientista social, professora do Dept de Nutrição da UFRN, e coordenadora do projeto Nutrir, Michelle Jacob, “a horta é a materialização do desejo de diversos professores do curso de nutrição, muitos deles já aposentados, professores que acreditavam que este poderia ser um espaço de formação do nutricionista mais implicado com o sistema alimentar de uma forma integral, pensando nas fases de produção de alimentos, do processamento de alimentos; e desenvolvendo uma relação mais próxima, também, com a natureza, que é um elemento essencial de qualquer formação hoje, de nível superior ou de nível básico, implicada com a formação não só do profissional de nutrição, mas com a formação do ser humano de maneira integral…” A coordenadora segue historiando como o projeto foi concebido também como área de convivência, de encontro de pessoas, com a criação de um espaço de ação comunitária na cidade, implicado com alimentação saudável, um espaço de multiplicação de ideias que puderam ser viabilizadas pelo edital de melhoria da qualidade do ensino, lançado pela Prograd – Pró-reitoria de Graduação da UFRN. “E a partir desse momento a gente percebeu que não poderia ser só nutrição, mas que a gente iria precisar de apoio de muitas áreas – e aí fomos procurar professores de ciências agrárias, de ecologia, de botânica, de ciências sociais, de educação, professores que seriam essenciais pra gente poder concretizar esse processo”, conta Michelle. Constituída como uma iniciativa dos Departamentos de Nutrição, Botânica e Zoologia, Ecologia e da Escola Agrícola de Jundiaí da UFRN, a Horta Comunitária Nutrir-HCN foi inaugurada em novembro de 2017, e conta com 9 docentes da instituição, além de estudantes de graduação e pós-graduação como bolsistas e voluntários, e membros da comunidade externa.

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AÇÕES DO NUTRIR

Além de sustentar o desenvolvimento de atividades de 8 componentes curriculares de graduação, sendo um espaço de estudo também sobre a biodiversidade brasileira, a HCN é cenário de mutirões quinzenais, onde todos os participantes encontram-se para conviver e cuidar das mais de 100 espécies implantadas em uma área de 10 m2, no Departamento de Nutrição. O diálogo constante empreendido a partir de aulas teóricas e práticas, com sessões e preparo de receitas com PANcs, seguidas de degustações, ações e mutirões na horta, nas escolas e nos eventos que seus membros promovem ou participam, é sintetizado em encontros de estudos, ciclos de debates presenciais ou por vídeo-conferência, durante os semestres letivos, onde o conjunto de conhecimento adquirido no período é socializado de forma sistemática. Participante do projeto Nutrir desde este início, a bióloga, mestre em botânica, e doutora em Ciências naturais, professora do Dept de Botânica e Zoologia da UFRN, Fernanda Carvalho, destaca como a proposta do Nutrir está relacionada com seus interesses pessoais como cidadã e como pesquisadora na área do conhecimento da diversidade vegetal. Convidada pela coordenação, o projeto atraiu o interesse da professora, preocupada com a recuperação de um conhecimento que vem sendo perdido: “com o maior acesso aos agrotóxicos e às sementes comercializáveis – cuja diversidade é insignificante quando comparada à flora do Brasil – o conhecimento tradicional sobre o poder nutritivo das plantas nativas está sendo vinculado a momentos de muita miséria e tristeza, quando estas plantas eram a única alternativa de sobrevivência para populações vivendo em estado de extrema fome. O hábito de se alimentar de plantas não convencionais é descartado, em geral, tão logo o alto estágio de necessidade seja ultrapassado. Hoje, quem conhece as plantas que se comia no passado geralmente são as pessoas mais velhas, e se não recuperarmos isso, nós vamos perder o conhecimento sobre uma diversidade enorme de plantas que sustentaram nutricionalmente várias gerações de pessoas, desde a ocupação da caatinga, por exemplo”. O alerta da professora segue destacando a importância da compreensão do uso dessas espécies pelas populações locais, o que ajudaria, igualmente, no trabalho com projetos de conservação. “Se a gente consegue substituir a monocultura por culturas mais diversas que incluam espécies nativas, que também proveem ao ser humano, a gente estará conseguindo melhorar a qualidade da água, a qualidade das matas nativas, diminuindo o consumo de agrotóxicos”, explica Fernanda. Além dos professores de áreas diversas, o projeto agrega a comunidade e alunos do curso de nutrição, principalmente. Para a graduanda em Nutrição, Clarissa Araújo Azevedo, que participa como voluntária, o projeto “valoriza a biodiversidade da nossa alimentação, ensina as pessoas que é possível e acessível comer alimentos seguros e nutritivos; e, principalmente, porque é uma iniciativa paralela ao sistema que nos obriga a nos alimentar da monocultura que enriquece poucos e adoece muitos.” Bolsista do projeto, Júlia Macedo explica como fazer parte do Nutrir enquanto estudante de graduação em Nutrição, a fez enxergar na prática a importância de alguns questionamentos: “de onde vem o nosso alimento? Como se dão as suas formas de cultivo, distribuição e consumo? São socialmente, ambientalmente e economicamente justas? Tudo isso faz parte da soberania alimentar dos povos, que se encontra ameaçada devido ao monopólio econômico e agrícola do atual sistema alimentar”, conforme segue esclarecendo. “O projeto da horta comunitária Nutrir nasce da integração de temáticas que fortalecem a busca por um sistema alimentar sustentável e justo para a segurança alimentar da população. E é por isso que eu faço parte deste belo projeto, pois o seu propósito é ensinar na prática como exercer o ato político de resistência ao atual contexto alimentar que estamos inseridos, seja valorizando a biodiversidade alimentar, ou fortalecendo a agricultura familiar, ou gerando novas demanda aos distribuidores, e ainda enaltecendo a regionalidade e tradição em nossa mesa para que juntos lutemos pelo direito humano à alimentação adequada. Além disso, existe uma bela dimensão neste projeto que é uma das suas característica marcantes, de ser um projeto comunitário, que por meio de seus ideais, integra e empodera a população como cidadãos alimentares.” A mesma visão crítica das alunas, sobre o sistema alimentar vigente, foi o que atraiu Rosana Moura Lima, nutricionista, aposentada do serviço público do Estado do RN, membro da comunidade externa à UFRN, para a HCN: “participo do Projeto Nutrir porque acredito na força da construção coletiva em torno da horta comunitária, como alternativa para o compartilhamento de saberes e práticas em prol do desenvolvimento de sistemas alimentares sustentáveis, e da luta pelo direito humano à alimentação adequada e saudável”, afirma. Participar do projeto permite aprender sobre o cuidado da vida, do alimento, das pessoas e da natureza, reforça Rodri Nazca, integrante do Mandala, Laboratório de Permacultura, parceiro do Nutrir. O projeto também “transforma o espaço universitário em um ambiente mais saudável, bonito e significativo, criando vínculos de cuidado e valorização do ambiente e das pessoas nele participantes”, acredita.

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NUTRIR NA CIDADE

Sensibilizar para a necessidade de promoção de ambientes saudáveis é, também, um dos objetivos do projeto. Um dos principais resultados do Nutrir, tem sido a difusão da ideia de hortas pedagógicas, apoiando a implantação em escolas da rede básica da cidade de Natal e da Grande Natal, além do apoio a projetos de hortas urbanas. É a coordenadora que contabiliza: “temos um capital de mais de 100 plantas, da nossa horta, a maior parte, plantas comestíveis que não estão presentes em nossa alimentação cotidiana e poderiam muito melhorar a qualidade nutricional de nossa dieta. Estamos elaborando um livro de receitas com plantas não convencionais, temos uma pesquisa em andamento, sobre biodiversidade brasileira, sobretudo biomas de caatinga, temos mutirões quinzenais com uma presença média de 30 pessoas, já atingimos mais de 1000 pessoas por meio de palestras e participação em eventos diversos…” O Nutrir criou, na página do projeto na internet, um Mapa para consulta da localização das hortas urbanas, feiras e mercados livres de Natal. Colaborativo, o próprio usuário poderá inserir espaços que não estejam cadastrados. A ideia é contribuir para a ampliação do acesso físico a alimentos saudáveis na cidade, apoiando a agricultura familiar sustentável e o consumo de alimentos locais. (Consulte em https://www.nutrir.com.vc) Para além da iniciativa como criadora do projeto Nutrir, a coordenadora Michelle destaca, ainda, seu envolvimento pessoal, enquanto integrante da comunidade, no espaço de convívio com um grupo que partilha das mesmas ideias, nessa área da alimentação: “como a maioria da população urbana, eu vivo em apartamento, a gente vive em uma cidade que não dá muitas oportunidades de conviver fora de casa, então pra mim o espaço dessa horta é um espaço onde me sinto livre, onde estou na rua mas me sinto mais segura, onde encontro pessoas, onde posso plantar, onde posso levar meus cachorros pra passear. Eu me sinto muito feliz quando estou na horta”. Com apenas 5 meses de existência, a HCN recebeu uma menção honrosa das Nações Unidas, sendo indicada pelo Fórum Global de Segurança Alimentar e Nutricional da ONU, como uma experiência exitosa por defender alimentação como direito humano e promover a alimentação adequada e saudável. “O projeto Nutrir está alinhado com pelo menos 5 objetivos do desenvolvimento sustentável difundido pela ONU. E é a partir dessa perspectiva que a gente trabalha”, finaliza a coordenadora.


Divulgado em: 14/09/2018

Por Jô Carvalho